A Japan House São Paulo e o Instituto Tomie Ohtake se uniram para a série “Correspondências Arquitetônicas: Brasil e Japão”, uma troca semanal de cartas online que irá traçar um paralelo sobre temas relacionados ao MORAR nos dois países.”

CARTA 4

Querida Japan House São Paulo,
Ficamos muito contentes que você tenha nos apresentado a Shared House in Oji, de Kengo Kuma. Pensamos que a melhor forma de trazer a discussão para o Brasil a respeito das ideias de reconversão de usos e de moradia compartilhada seja apresentar um exemplar dos movimentos sociais de luta por moradia. A Ocupação 9 de Julho, que teve início em 2016 com integrantes do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), guarda uma importante história sobre a luta pelo direito à moradia e a condição de inúmeros edifícios abandonados e subutilizados na região central da cidade de São Paulo.

Narrar a história desses movimentos sociais, além de apontar para questões urgentes da conformação das cidades brasileiras, é tratar de sua relevância política ao deflagarem a necessidade de urgência na articulação do poder público para o cumprimento do direito à moradia previsto em lei – como consta na Constituição Brasileira de 1988. Reivindicações como as do MSTC, fundado em 2001 por Carmen Silva, evidenciam que a moradia digna é mais complexa do que a oferta a uma mera unidade habitacional, pois “morar” inclui mobilidade, acesso a equipamentos e serviços públicos (saúde, educação, cultura, segurança) e a oportunidades de trabalho. Quando avaliamos o problema do deficit habitacional brasileiro, aliado a estes fatores, somos capazes de compreender os motivos que levam muitas dessas ocupações a se instalarem no centro das grandes cidades.

A Ocupação 9 de Julho, que escolhemos como exemplo nessa correspondência, abriga 138 famílias de baixa renda, incluindo brasileiros de diversos estados, imigrantes e refugiados de outros países que, sem o Movimento, viveriam em condições incertas ou sem abrigo. O edifício do início da década de 1940, que sediou o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), ficou inutilizado por 42 anos até que, em 2016, foi ocupado pelo MSTC. Os próprios ocupantes realizaram a limpeza do local e coordenaram obras de recuperação (como reformas hidráulicas e elétricas e recuperação de escadas). Esse tipo de ação é bastante recorrente nestes movimentos recuperando, por meio da força de trabalho dos seus integrantes, infraestruturas abandonadas, sem função social, e fornecendo assim condições para o processo de regularização do edifício.

Os três primeiros andares do prédio, destinados originalmente para atendimento ao público, agora acolhem atividades de cunho educacional e cultural, contando inclusive com uma galeria de arte. Vale dizer que tudo é gerido pelos próprios ocupantes. Os 12 andares acima, que eram moradias para os funcionários do próprio INSS, se transformaram em unidades habitacionais para os mais de 347 moradores.

Na Ocupação 9 de Julho (e em qualquer uma das mais de doze ocupações geridas pelo MSTC) são desenvolvidas ações que instrumentalizam e capacitam os ocupantes. São atividades como formação política, ambiental e esportiva, serviços de educação e treinamento profissional, além de acesso a orientação jurídica.
Eventos abertos são realizados regularmente, alguns deles reunindo oito mil pessoas. Ocasiões como essa oferecem a possibilidade de que mais pessoas entendam, de fato, o que é uma ocupação, e com isso tenham a oportunidade de se livrar de preconceitos que, infelizmente, ainda são associadas aos movimentos de moradia em nosso país.

As iniciativas do MSTC, embora ainda negligenciadas pelo poder público, são reconhecidas no ambiente acadêmico e por arquitetos e urbanistas no âmbito nacional. Muitos desses profissionais atuam em parceria com o MSTC, por intermédio de consultorias e ações conjuntas. A metodologia em rede encabeçada por Carmen Silva articula formas de financiamento, requalificação e manutenção predial, administração comunitária, mobilização e organização dos integrantes, tornando assim o MSTC uma das práticas mais inovadoras e bem sucedidas no Brasil quando pensamos em habitação de interesse social.

Recentemente, este reconhecimento ganhou novo fôlego devido ao convite para participar da 3ª Bienal de Arquitetura de Chicago (que ocorreu entre setembro de 2019 e janeiro de 2020 em Chicago, Estados Unidos). O MSTC, juntamente com a Escola da Cidade e o coletivo interdisciplinar O Grupo Inteiro, apresentaram a exposição “MSTC – Moradia como Prática de Cidadania”. A mostra trouxe a história e as diversas estratégias desenvolvidas pelo Movimento, compiladas também em uma densa publicação sobre o tema.

Tamanha visibilidade é fundamental para ajudar a combater uma série de investidas que tentam criminalizar os movimentos sociais em São Paulo, ignorando o fato de estarem de acordo com os marcos regulatórios do país e a importância de sua luta por melhores condições em cidades com tão pouca oferta habitacional de acesso democrático. Nossa expectativa com essa carta é dar luz à uma discussão de tamanha importância sem a qual não poderíamos efetivamente abordar os desafios e as soluções mais efetivas acerca das diferentes formas do morar nas cidades brasileiras. Pensar como é possível abordar a moradia hoje requer que a encaremos como um direito de todos.
Querida @japanhousesp, nos despedimos agora, mas faço questão de frisar o quão prazerosa foi essa troca de correspondências. Um abraço e até a próxima!

Instituto Tomie Ohtake

Veja a resposta completa
https://bit.ly/carta_04

Projeto: Ocupação 9 de Julho – MSTC


Fotos: Cory Dewald, 2019


Fotos: Cory Dewald, 2019


Fotos: Cory Dewald, 2019


Fotos: Tom Harris, 2019

  

CARTA 3

Querida Japan House São Paulo,

Começo essa carta contando que resolvi, dessa vez, alterar um pouco os rumos da nossa conversa. Sei que estamos ultimamente discutindo iniciativas recentes e o modo como arquitetos vêm pensando novas ideias de morar, mas não pude me esquivar de relembrar um projeto de quatro décadas atrás. Voltamos rapidamente para 1979 porque, quando se trata de refletir sobre modos de morar, a Casa Bola de Eduardo Longo continua, ainda hoje, sendo um projeto visionário.

Embora Longo tenha estudado em São Paulo na Universidade Mackenzie, desde o seu primeiro projeto realizado em 1964, ainda estudante, o arquiteto mostrou um modo de lidar com a arquitetura muito mais conectado a movimentos de vanguarda de outras regiões do mundo do que à escola brutalista que estava sendo consolidada naquele momento em São Paulo.

Em 1972, contaminado pela onda contracultural e pelo movimento hippie, Longo, que já era um arquiteto promissor, passa por um processo vigoroso de revisão de sua atuação e seu modo de vida, elimina hábitos supérfluos e faz modificações substanciais em sua casa-escritório de 1970, derruba paredes e transforma o térreo da construção em passagem pública. É sobre a estrutura da casa-escritório que o arquiteto concebe um protótipo de sua ideia de casa bola na escala de 8:10. Assim, a casa que deveria ter dez metros de diâmetro é feita com oito, respeitando as exigências legais de recuo do terreno. Mesmo com tamanho reduzido, a casa chama a atenção de qualquer passante, dado seu formato inusitado e a inevitável indagação de como devem ser seus espaços internos.

Longo constrói praticamente sozinho a sua casa, que seria o protótipo manual de uma casa a ser produzida em escala industrial, tal como um automóvel. Essas ideias conectam Longo às vanguardas como os ingleses Archigram e os metabolistas japoneses, ambos dos anos 1960. As casas bola seriam instaladas em edifícios que mais se parecem com prateleiras gigantes, com o benefício de assegurarem uma área pública ao redor de si devido à sua volumetria, haja vista que uma esfera ao lado de outras não ocupa o espaço completamente.
A casca externa, de argamassa armada, foi concebida com a ajuda de Charles Holmquist, um amigo com experiência na construção naval. Internamente as paredes são de concreto celular, um tipo mais aerado e leve de concreto. A casa, onde Longo ainda hoje reside, conta com três suítes, sala de estar, lavabo, cozinha, dormitório de empregada e lavanderia. Bom, por mais radical que seja a forma e os materiais, trata-se de um programa de classe média alta típico de até poucos anos atrás.

Querida Japan House São Paulo, esperamos que você tenha achado que valeu a pena voltar um pouco no tempo. Esperamos por notícias.

Instituto Tomie Ohtake.
Veja a resposta completa
https://bit.ly/carta_03

Projeto: Casa Bola – Eduardo Longo
Fotos: Tuca Reines

  

CARTA 2

Querida Japan House São Paulo,
Obrigado por ter nos apresentado o projeto A House for Oiso, do arquiteto Tsuyoshi Tane, com o DGT Architects. O seu diálogo com a memória e suas técnicas construtivas, sabendo lidar com um sítio com tantas camadas históricas, nos remeteu a um projeto brasileiro que teve imensa repercussão, tendo sido premiado pelo Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel em 2017 e logrado prêmios também fora do Brasil.

O projeto Moradias Infantis, inaugurado em 2017, lida com questões profundas da memória nacional como os saberes indígenas e a tradição do trabalho manual da lavoura. Os escritórios Aleph Zero e Rosenbaum se uniram nessa empreitada de reinventar o internato de uma escola rural localizado numa fazenda no município de Formoso do Araguaia, no Tocantins.

Para viabilizar um projeto que tivesse claramente um caráter colaborativo, jovens e outras pessoas envolvidas foram chamados para pensar conjuntamente uma nova ideia de internato e aprendizado. A finalidade era ser efetivamente um lar para 540 crianças e adolescentes, com espaços convidativos e aprazíveis. Estes filhos de caboclos e indígenas com idade entre 13 e 18 anos ali vivem em regime de internato a fim de viabilizar a rotina escolar, uma vez que suas famílias vivem em regiões isoladas da zona rural do centro-oeste brasileiro. Assim, se antes havia um dormitório para meninos e outro para meninas, a separação por gênero resultou em duas vilas, porém agora com quartos para seis pessoas. Todo o projeto é acolhido por um telhado generoso que garante sombra. Anexos aos dormitórios, espaços de convívio como sala de TV, sala de leitura, varandas, pátios e redários visam aproximar o edifício de uma lógica de casa.

Do ponto de vista construtivo, houve o emprego de peças pré-fabricadas de madeira reflorestada. Assim como as casas da região, os blocos de alvenaria são de barro cru e utilizaram o solo da própria fazenda. Outra técnica recorrente é o efeito muxarabi, alcançado com o afastamento entre os blocos, recurso usado de modo a garantir qualidade térmica para as áreas de serviço do projeto. Nos pátios buscou-se reproduzir o microclima advindo do encontro de 3 biomas locais: Cerrado, Amazônia e Pantanal.

Como apontou o júri da 4ª edição do Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel, o que vemos é um diálogo minucioso e atento entre a técnica contemporânea e o rico conhecimento vernacular local. Ao aliar a solução industrializada, da estrutura de madeira laminada colada, ao emprego vernacular do adobe, estes dois materiais conferem unidade aos pavilhões que abrigam os dormitórios, áreas coletivas e passarelas.

Um abraço,
Instituto Tomie Ohtake.

Veja a resposta completa
https://bit.ly/carta_02

Projeto Moradias Infantis – Aleph Zero + Rosenbaum
Fotos: Leonardo Finotti

  

CARTA 1

Querida Japan House São Paulo, lhe escrevemos com a curiosidade de saber como a arquitetura contemporânea japonesa vem lidando com a questão do morar. Sim, sabemos que este é um tema vasto, mas como teremos ainda algumas oportunidades para desenrolar essa conversa, gostaríamos de começar esse diálogo sem muita pressa, apresentando uma das soluções de moradia mais interessantes da arquitetura contemporânea brasileira. Mesmo metrópoles como São Paulo lidam com a ideia de adensamento de maneira muito distinta das cidades japonesas. E quando pensamos em lotes exíguos no Brasil, é comum vir à mente bairros moldados pela lógica da informalidade. Vamos usar este mote para apresentar o projeto que logrou primeiro lugar na 3ª edição do Prêmio de Arquitetura Instituto Tomie Ohtake AkzoNobel, em 2016.

A Casa Vila Matilde, situada no bairro de mesmo nome em São Paulo e concebida pelo escritório Terra e Tuma, surgiu com um propósito claro: deveria se adequar às restrições orçamentárias e contar com uma construção ágil, a fim de que os recursos da proprietária não se esvaíssem com a necessidade de pagar um aluguel durante o projeto. A casa anterior estava comprometida em termos de estrutura e salubridade e cederia seu lugar para a nova casa.
Danilo Terra, Pedro Tuma e Fernanda Sakano, arquitetos do escritório paulistano Terra e Tuma, já vinham desenvolvendo uma investigação com estrutura e bloco aparentes, o que resulta em baixo custo e agilidade na execução da obra. A escolha por colocar tudo à mostra não é mera demanda técnica, mas também um partido estético. Como foi destacado pelo júri da edição de 2016 do Prêmio de Arquitetura, o emprego de alvenaria autoportante, de lajes pré-fabricadas em concreto armado, além das instalações elétricas aparentes emprestam à casa um aspecto associado comumente a escolas e fábricas, mas não tanto a um repertório doméstico. Ao mesmo tempo, essa crueza em revelar as entranhas da construção estabelece um forte diálogo com o léxico do brutalismo paulista, bastante consolidado na segunda metade do século XX, com o seu monocromatismo advindo do uso extensivo de concreto aparente.

O projeto, concluído em 2015, também se mostrou funcional no que diz respeito ao aproveitamento dos espaços. A planta baixa foi organizada de modo a atender aos desafios do lote exíguo (4,8m de largura por 25m de profundidade). No dia-a-dia, a casa funciona fundamentalmente como uma casa térrea. Afinal, a futura moradora Dona Dalva já contava à época com pouco mais de setenta anos. Há no centro do terreno um pátio que é ladeado por um corredor articulado com lavabo, cozinha e área de serviço. À frente do lote está a sala, que teve sua laje transformada em horta. Ao fundo do terreno se situam as escadas e suítes, sendo a suíte do pavimento superior destinada a visitantes e a suíte térrea, da moradora. O pátio possui, portanto, a função de garantir luz e ventilação para todos os cômodos. O projeto, que conta com 95m2, contempla ainda a possibilidade de ampliação.

Como estávamos dizendo, os lotes exíguos no Brasil não se resumem a bairros frutos da informalidade, mas a Casa Vila Matilde é especialmente interessante porque as soluções arquitetônicas brasileiras, que normalmente ganham destaque em revistas e premiações, são destinadas para a classe média alta e para os ricos. É muito comum o pensamento de que são somente algumas pessoas que podem custear o trabalho de arquitetos, resultando num grande percentual de edifícios realizados por autoconstrução. Este projeto demonstra que é possível realizar obras de excelência respeitando limites orçamentários mais restritos. Neste caso, foram as economias feitas por Dona Dalva ao longo de seus trinta anos como diarista que custearam a proposta. Aliás, a casa teve tamanha repercussão que a simpática Dona Dalva se tornou figura recorrente em entrevistas e matérias contando como conseguiu viabilizar o projeto.

Esperamos que as notícias tenham sido provocativas o suficiente para que você nos traga notícias de como a arquitetura japonesa recente vem lidando com a questão dos lotes mínimos. Aguardamos ansiosos!

Um abraço,
Instituto Tomie Ohtake.

Veja a resposta completa em
https://bit.ly/carta_01

Projeto Casa Vila Matilde – Terra e Tuma
Fotos: Pedro Kok